quinta-feira, 8 de outubro de 2015

"É um bom sinal ouvir as estrelas"

Era janeiro e eu estava em São Paulo. São Paulo é o protótipo do caos e, como minha vida está sempre um caos, ela é hoje a minha cidade favorita. Claro que eu amo Manaus, onde nasci e me criei, mas, como uma boa filha única poder sair de casa e se aventurar numa cidade que não consegue me abraçar, por ter tanta pressa, é um sentimento de "ninguém pode me segurar".

Eu sinto que voo em São Paulo, pois sempre estou lá ou quando estou de férias/folga ou quando quero ver algum super show. Por lá ando e obrigação nenhuma me para. É a cidade que nem me olha, mas me aceita desajeitada, espevitada, impulsiva e quente, ou, como dizia um ex-namorado "Nathane, São Paulo é tão santo sem você".

Mas o que me faz escrever sobre São Paulo não é a falta d'água, não é a gestão do Alckmin, nem as bicicletas na Paulista e nem sobre a coxinha e caipirinha do Veloso, embora todos mereçam textões. Eu vim contar uma história que eu protelei tanto para contar do jeito que eu queria, que talvez esteja arrependida.

Tem um lugar encantador em Pinheiros que se chama 'Jazz nos Fundos'. Nessa minha ida, o Pedro e a Aline (meus amigos que moram em São Paulo e no meu coração) me levaram para conhecê-lo. Era minha última noite na cidade e eu cheguei nesse lugar desconfiada e sai de lá com uma das melhores experiências que, posso dizer, ter vivido nesses 25 anos.

O espaço é no fundo de uma garagem, ou borracharia, ou garacharia. Você vai entrando, entrando e do nada encontra um bar aconchegante e estreito que respira música.


Cheguei e encontrei vários avisos "você veio aqui para ouvir música". Pensei "isso é óbvio", mas quando fui adentrando mais vi outros avisos impressos "silêncio", "respeite os músicos", "silêncio, o show já vai começar".

Quem me conhece bem sabe que ficar calada não é bem o meu forte. Quem me conhece mais ainda sabe como eu adoro ficar caladinha assistindo aos shows das minhas bandas e cantores favoritos sem ter ninguém puxando muita conversa. Encontrava ali o meu lugar.

No palco, tocava o incrível trio Hammond Grooves. Achei que o órgão Hammond seria o suficiente pra me deixar feliz aquela noite. Nem sabia da existência daquele instrumento, mas o som que saia dele me deixou hipnotizada. Até o rapaz bonito, que tinha um bigode ensaiado no rosto e dividia minha atenção, deixou de existir ali. Até mesmo a sangria que Pedro comprou pra bebermos ficou sem gosto. A música preenchia tudo. Pronto. Estava ótimo. Podia voltar para Manaus depois dessa.

De repente percebo uma senhora-bem-senhora. Estava com vestido parecido com uma camisola. Tinha o rosto sereno e estava dançando, diferente de mim que parecia um cachorro parado de frente pra uma televisão pra cachorro.

Ela estava acompanhada por um casal. O homem tava com uma camisa do Sex Pistols amarela. A moça vestia um vestido florido. Eles acompanhavam 'ela'. Dançavam com 'ela'. Riam com 'ela'. Parecia filme. As vezes eu acho que era.

Olhei pouco para eles, mas aos poucos, como uma boa tiete, que gosta de praticamente ficar em cima do palco para perceber todos os detalhes do show, fui me aproximando 'dela' sem querer.

Na terceira música, 'ela' vira pros amigos e diz alto:

-QUE SOM É ESSE? QUE ESTILO DE MÚSICA É ESSE?
Eles responderam. 'Ela' dançou. Depois ela perguntou de novo:
-QUE TIPO DE MÚSICA É?
Pedro disse:
-É jazz!
E ela, com os olhos brilhando, perguntou:
-Jazz? Sério? Eu nunca ouvi jazz na minha vida!

Ouvi aquilo e acreditei que realmente uma senhora de 87 anos nunca tinha ouvido jazz, embora tenha nascido em 1928. Ouvir aquilo me deixou encantada, me fez arregalar os olhos e me deu vontade de parar de prestar atenção na música para conversar com ela. Pensei que ela seria uma ótima personagem para uma pauta. Pensei o quão poético foi ela dizer que não conhecia jazz. Pensei o quanto ela foi doce quando Pedro explicou rapidamente de onde tinha surgido o jazz e o nome de alguns músicos que tocavam o estilo. Queria que a música parasse e ela subisse no palco pra contar a história dela.


-Cyda Camargo, com 'y', me procurem no face! Nossa, como seu vestido é lindo. Estou encantada pelo jazz. Obrigado por terem me trazido aqui. OH GOD, WHAT A STARRY SKY.

Cyda Camargo. 87 anos. Ariana. Professora de inglês, poetisa, artista, e fã de Foo Fighters. Fácil de ser identificada por uma marca de nascença que tinha na bochecha direita e, que só depois de idosa, conseguiu assumir o sinal e não sentir mais vergonha. Participava frequentemente de saraus na Praça Benedito Calixto, também em Pinheiros.

Para nossa sorte, Cyda tinha acompanhado os amigos que fumavam lá fora do bar. Era como se eu tivesse encontrado uma ídola. Depois de se apresentar, ela elogiou meu vestido, que tinha estampa de guarda-chuva. Disse ainda que eu não voltasse pra Manaus, pois na outra semana teria um evento com poesias e que eu ia adorar.

Conversávamos todos sobre profissão, sobre poesias, sobre música, como se tivéssemos todo o tempo do mundo. E tínhamos, inclusive para olhar pro céu e admirar a quantidade de estrelas exibidas que resolveram aparecer ali.


O céu estava realmente estrelado e São Paulo fazia cosplay de Manaus com uma noite quente. Aline e Pedro estavam abraçados. Então, ela perguntou se eles gostavam de poesia e se eles conheciam Olavo Bilac.

De repente a garagem se transformou no sarau e Cyda recitou Ouvir Estrelas:

"Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...

E conversamos toda noite, enquanto
A Via Láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir o sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: "Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizes, quando não estão contigo?"

E eu vos direi: "Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas".


Pedro e Aline terminaram de recitar junto com ela o final da poesia e Cyda disse que era um bom sinal saber ouvir estrelas.

Depois disso, nos despedimos de Cyda. Era a primeira vez e a última que eu encontrava com ela ao vivo, e eu voltava para Manaus ainda pensando muito naquela noite. Nos adicionamos no Facebook, conversamos um pouco, e eu prometi pra ela que ainda escreveria sobre a primeira vez dela com o jazz. Ela prometeu escrever também e semanas depois publicou esse texto em seu perfil:


Como se não bastasse, ela ainda escreveu um "poeminha" para mim, a menina do vestido de guarda-chuvinhas.


Cyda faleceu na tarde de hoje, em Campinas,São Paulo, vítima de um câncer no pulmão. Quando vi as postagens de amigos dela se despedindo no Facebook, senti meu coração apertado como se eu tivesse perdido alguém que convive comigo. Senti uma vontade que eu não sentia há tempos, que era de escrever e publicar no blog. Tenho certeza que foi um sopro de inspiração de Cyda, até porque "é um bom sinal ouvir as estrelas".





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